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Como é ser diretora de escola em regiões marcadas pela violência

POR:
Priscila Arce
EE Jornalista Tim Lopes, no Complexo do Alemão, no Rio, com aulas canceladas após noite de confronto entre policiais e criminosos. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Não apenas no Brasil, mas no mundo, nos deparamos com regiões marcadas pela violência: urbana, das guerras, do desemprego, violência simbólica ou doméstica... violências. O papel do diretor de escola é fundamentalmente, na perspectiva do educador Paulo Freire, ler o mundo e a realidade do território de sua atuação e aprender com essa leitura. Não basta ao educador anunciar o contexto dramático. Nos cabe a tarefa de denúncia, e possivelmente, é nela que estão os maiores desafios do século XXI. A realidade nos convoca a fazer algo.

As zonas de conflito brasileiras estão no Morro da Rocinha quando as crianças e professores são forçados a suspender suas aulas por conta de um combate armado entre traficantes e policiais; estão nas regiões periféricas quando as crianças não dormem a noite toda por conta de disputas violentas por territórios.

Percebemos os conflitos quando, diante da crise econômica, vimos os muros das vias principais da cidade passarem a ser ocupados por famílias inteiras que são forçadas a abandonar suas antigas casas por não conseguirem custear o aluguel; quando crianças são assassinadas na escola por balas perdidas, e quando elas estão em escolas que são alvo de pessoas que precisavam de um atendimento psicológico e emocional.

Eu vejo essa realidade de perto. Sou diretora de escola em uma zona de conflito dentro da cidade de São Paulo e tive que reaprender a olhar, a ler a realidade, a comunicar ideias, a dividir responsabilidades com o poder público, a escutar cada menino e menina que todos os dias têm um relato violento para compartilhar e que infelizmente os marcam profundamente.

Diante das histórias, muitas vezes, percebia que não sabia exatamente como ajudar, e ao mesmo tempo, constatava que não havia sofrido nada semelhante ao relato diário das nossas crianças. Brilhantemente o escritor moçambicano Mia Couto disse recentemente, em visita ao Brasil, sobre o sofrimento vivido por seu povo: “Eu sofria porque via os outros sofrer”. Penso que sem esse profundo sentimento não podemos atuar em regiões tão duras. E sim, eu também sofro e converto as dores em luta por uma Educação de qualidade para crianças, jovens e adultos.

Esse ano foi dilacerante para o Brasil. Muitas vezes, a escola ocupou as manchetes do dia com situações trágicas. Fui educadora de bebês na creche e, mesmo se não tivesse sido essa professora dos pequenos, não teria como não sofrer com a morte da professora Heley, da escola em Janaúba. Doeu demais a morte dos jovens de Goiânia, na escola da coordenadora Simone Maulaz Elteto. Sofri com a agressão vivida pela professora Marcia Friggi. E o que essas educadoras fizeram foi heroísmo? Eu considero que foi um ato de amor ao próximo.

O desafio

Educadores apressados dirão que não são obrigados a amar, nem a passar por isso, nem a doar-se a um contexto violento ou a falar de outro modo com as crianças, mas essas três profissionais da Educação provam que é preciso mais do que simplesmente dar aulas. É necessário, como também disse Mia Couto, "que o professor dê lições”.

É preciso se colocar no lugar do outro, tornar público o sucateamento da Educação, sofrer porque os outros sofrem. É necessário amor, porque o amor se importa com o outro que não é da família, o colocando no lugar do ente mais querido quando tomamos decisões.

E fazer algo é uma escolha. Não é fácil, não é simples, mas são sujeitos individuais com boas ideias que promovem pequenas mudanças. Ao olhar do ponto de vista do diretor de escola, se comprometa com o bairro, conheça a história das pessoas, repare se suas atitudes políticas e pedagógicas devem se dirigir às famílias, ao conselho tutelar, aos docentes, aos funcionários, ao poder público, à mídia...

Acredito em uma prática que sonhe outros mundos possíveis às nossas crianças que crescem em um mundo tão conflituoso. Educamos o outro com nossas próprias vidas em ação. Nesse caminho de pedras e incertezas, muitos amigos ficaram adoecidos, traumatizados, vulneráveis e foram vítimas de muitas violências. A eles dedico essas palavras ressaltando que é preciso sonhar para que os outros não sofram. Desejo que eles retornem em breve às suas escolas com dignidade.

Saiba mais:

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Aprendendo com a Própria História. Rio De Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Café Filosófico (CPFL). Especial Fronteiras do Pensamento com Mia Couto. In: https://www.youtube.com/watch?v=3BbruWdNhf8. Acesso em: 201/10/2017.

Priscila Damasceno Arce é diretora da EMEF Sebastião Francisco O Negro, na zona leste de São Paulo-SP. Estudou em escola pública a vida toda e também foi professora e coordenadora pedagógica. É especialista em alfabetização e mestranda em formação de formadores pela PUC-SP.